por Raquel França dos Santos Ferreira (SACPS/FBN)1
Quando o jornalista Adolfo Aizen (1904-1991), aos 27 anos, arrumou as malas e partiu em viagem para os Estados Unidos, um convite feito pelo Touring Club do Brasil, no ano de 1933, ele tinha algumas ideias na cabeça. Mas jamais poderia imaginar as portas que viriam a se abrir, ao longo de sua carreira.
De origem judaica e russa, a família Aizen veio para o Brasil devido às perseguições contra os judeus levadas a efeito durante o reinado do czar Nicolau II. Primeiro, ficaram em São Paulo (SP) e, com a morte prematura do pai, a viúva e seus oito filhos se transferiram para Salvador (BA), onde tinham parentes que poderiam auxiliar nas despesas da família. Mudaram-se para o Rio de Janeiro em 1922, em busca de melhores colocações de emprego para os irmãos mais velhos.
No início da década de 1930, Adolfo Aizen começou a trabalhar em uma das maiores gráficas do Rio de Janeiro. A Empresa O Malho que produzia, dentre outras publicações, a revistinha em quadrinhos O Tico-Tico – a primeira do gênero no Brasil, voltada para crianças e jovens. Não foi à toa que Aizen começou a se interessar por esse tipo de publicação: dinâmico, unindo texto e imagens, as historinhas transmitiam várias noções às crianças e podiam ser usadas de diversas formas.
Os quadrinhos e charges, que seriam a inspiração para revistinhas em quadrinhos, circulavam no Brasil desde meados do século XIX, em especial, pelas mãos do ítalo-brasileiro Ângelo Agostini (1843-1910). Suas produções, inicialmente, eram voltadas para o público adulto, devido à crítica social e política que continham. A Vida Fluminense e Revista Illustrada, ambas editadas por Agostini, são publicações fundamentais para quem quer conhecer tanto a arte gráfica operada pelo desenhista, quanto as inclinações sociais e políticas da época.
Naquelas publicações, Agostini trouxe ao leitor “As Aventuras de Nho-Quim” (A Vida Fluminense, 1869) e “As Aventuras de Zé Caipora” (Revista Illustrada, 1883) que, junto com O Tico-Tico também editada por ele, seriam as primeiras histórias em quadrinhos existentes no Brasil – ainda sem vários aspectos gráficos, como balões de diálogo e linhas cinéticas, que lhes seriam tão marcantes a partir da década de 1930.
A popularização dos traços dos quadrinhos, possibilitada pelos avanços no setor gráfico – como a incorporação de técnicas que uniam desenho e texto em um mesmo papel – encontra terreno fértil na porção norte da América (ANDRADE, 2008). Nos EUA, logo vão surgir as revistinhas dedicadas às histórias de personagens infantis, heróis, caubóis, e uma infinidade de vilões. Da política ao entretenimento, passando pela sátira e pelo humor, os comics, como são hoje conhecidos, chegam ao Brasil com maior intensidade após 1933, viajando na bagagem de Adolfo Aizen.
Na viagem aos Estados Unidos citada no início desse texto, dedicada a ações de aperfeiçoamento – uma ação do Touring Club do Brasil –, Aizen entrou em contato com as primeiras revistinhas de heróis, vendidas nas bancas de jornais estadunidenses. Ao voltar ao Brasil, com a mala repleta de projetos editoriais, apresentou ao Roberto Marinho – então editor do jornal O Globo – a proposta de editar, nas páginas do jornal, um suplemento com historinhas infantis em quadrinhos. Diante da recusa, levou seu projeto para o jornal A Nação, de propriedade de João Alberto Lins de Barros que, aceitando o desafio, passou a publicar o Suplemento Juvenil, entre 1934 e 1937 (GONÇALO JUNIOR, 2004).
A essa época, Aizen deu o seu primeiro salto no mundo do empresariado editorial: fundou a editora Grande Consórcio de Suplementos Nacionais (1937-1939). A partir dessa editora, Aizen lançou as publicações: Mirim (1937) e O Lobinho (1939), além de dar continuidade ao Suplemento Juvenil, já não mais publicado pelo jornal A Nação.
Paralelamente a esse cenário das edições de quadrinhos nacionais despontaria, nos Estados Unidos, na década seguinte, um outro editor russo: Albert Lewis Kanter (1897-1973). Radicado nos EUA desde 1904, nos anos 1940 Kanter deu início à empreitada de publicar revistas para crianças e jovens, e acabaria criando a coleção Classic Comics, para Elliot Publishing Company. Em 1942, ela passaria a ser publicada pela Gilberton Company, Inc. e, em 1947, teria seu nome modificado para Classics Illustrated (1941-1962). Ao total, foram 169 fascículos dedicados a adaptar, para os quadrinhos, obras de literatura clássica europeia e americana. Com o firme propósito de difundir literatura entre o público infantil, Kanter abriu as portas para que as Histórias em Quadrinhos fossem levadas para os lares estadunidenses.
Os principais autores publicados na coleção de Lewis Kanter foram Alexandre Dumas e Júlio Verne, seguidos por Conan Doyle, Vitor Hugo, e por autoras como Emily e Charlotte Brontë, Anna Sewell, Jane Porter, George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans), Mary Shelley, cada uma com uma obra transposta para HQ. Além disso, há cerca de dez obras de autores estrangeiros anônimos quadrinizadas na coleção.
No Brasil, Adolfo Aizen sempre em contato com o mundo editorial americano – iniciou a sua segunda incursão como empresário no ramo editorial: fundou a Editora Brasil-América Limitada (EBAL/1945-1995), empresa que seria dedicada a publicar livros infantojuvenis, obras didáticas mas, sobretudo, Histórias em Quadrinhos. O império editorial de Aizen chegou a publicar mais de 40 títulos, atingindo um volume de 150 mil fascículos produzidos por mês, e circulando em todo o território nacional.
E é aí que entra a coleção Edição Maravilhosa. Com cerca de 200 fascículos em sua primeira série, além de publicar as obras da congênere Classic Comics/Classics Illustrated, a Edição Maravilhosa também quadrinizava obras da literatura brasileira dos séculos XIX e XX. A publicação contou com três séries: a primeira circulou entre 1948 e 1962; a segunda, entre 1958 e 1960 – reedição das primeiras 24 histórias da primeira série; a terceira, no ano de 1967 – com mais dez fascículos reeditados. Em 1970 a editora lançou um fascículo inédito: “A Bagaceira” de José Américo de Almeida. Paralelamente a essas séries, foram publicadas ainda: Edição Maravilhosa Especial, em dezembro de 1958; Júlio Verne, entre 1974 e 1975, e Mini-Heróis, em 1978.
A Edição Maravilhosa trazia, em suas capas, as indicações dos autores das obras literárias quadrinizadas. Em algumas edições havia também referência aos ilustradores da capa e roteiristas daquele número. Entre as edições nº 20 (1950) e nº 163(1958) sinalizava-se a indicação Classics Illustrated, fazendo menção à obra que inspirou a coleção, cujos direitos de propriedade autoral pertenciam, naquela época, a Gilberton Company, Inc.
Na contracapa havia informações sobre demandas dos leitores, biografias de alguns autores das obras originais, dicas sobre como ler as histórias com as crianças e orientação para que se buscassem as obras literárias originais. Havia também informações sobre cidades europeias e curiosidades históricas. O gênero textual predominante é o romance literário, entretanto, aparecem o romance histórico e as biografias, como as de Alberto Santos Dumont e Lima Barreto.
As revistas da primeira série da Edição Maravilhosa traziam a indicação de periodicidade mensal, entretanto, durante os anos de 1954 e 1959, as publicações circulavam duas ou três vezes ao mês. Além disso, até 1951 havia a observação, na capa, de que as obras eram destinadas a “maiores de 12 anos”. A partir de 1954 passam a trazer a indicação “para adultos”, até o final da coleção, em 1962.
No ano de 1949, foi lançado o primeiro fascículo dedicado à quadrinização de obras literárias nacionais. A obra escolhida foi “O Guarani”, de José de Alencar. Após essa, outras 53 obras nacionais foram transportadas para o formato Histórias em Quadrinhos. O autor nacional com mais livros quadrinizados foi José de Alencar, com oito obras, seguido por José Lins do Rego, com seis títulos. Jorge Amado e Bernardo Guimarães aparecem com três obras cada.
A coleção também é caracterizada pela participação feminina, pois abriu as portas para a quadrinização de romances escritos por mulheres brasileiras. Das autoras, destaca-se Dinah Silveira de Queiroz, com duas obras transportadas para HQ. Mas também encontramos Lúcia Benedetti, Sra. Leandro Dupré, Ofélia Fontes, dentre outras.
Fortemente marcada pela influência do Código de Autoridade dos Quadrinhos (Comics Code Authority – EUA, 1954)[2], que determinava quais as linguagens, imagens e temas seriam os mais apropriados para uma HQ infantojuvenil, a Edição Maravilhosa apresenta sinais de seleção de imagens e texto para que se adequassem às normas elaboradas pela EBAL – à semelhança do Código citado, Adolfo Aizen elaborou uma cartilha de normas que a equipe de editoração da revista deveria seguir, direcionando as histórias de modo que evitassem, da melhor maneira possível, embates com as alas mais conservadoras da sociedade brasileira. O principal exemplo desse tipo de censura é a mudança na faixa etária, com a adoção da indicação de que as revistas seriam para o público adulto, após 1954.
Afinal, quais os propósitos dessa coleção? Primeiro, estimular a leitura das obras clássicas através dos quadrinhos – algo que era sinalizado nas próprias revistinhas, que traziam a orientação de que o quadrinho era apenas uma parte da historinha, devendo ser lida na íntegra em sua obra original. Depois, procurar desmistificar as HQ como material impróprio para crianças e jovens, buscando unir exemplares de literatura clássica – eleita como “boa literatura” para alguns setores conservadores da sociedade – à uma linguagem mais voltada para jovens.
Certamente, Histórias em Quadrinhos e Literatura são artes que, embora detenham características, estilos e estruturas próprias, dialogam entre si de diversas formas. Imagens e palavras compõem, juntas, textos complexos e polissêmicos. Apesar de ser uma transposição, muitas vezes com a condensação da obra clássica, a riqueza dos desenhos e detalhes das HQ as tornava obras singulares. Enquanto na Literatura o enredo é apresentado, predominantemente, através do texto verbal, ocasionalmente ilustrado, a sequência gráfica das HQ, bebendo na arte cinematográfica da sequência fílmica de quadros, expõe o enredo através das ilustrações, eventualmente narradas por textos verbais (VERGUEIRO; RAMOS, 2009).
Para finalizar, sem pretendermos esgotar o tema, ao fazermos o breve exercício de juntar algumas das pontas da trajetória de Aizen – a ida aos Estados Unidos, a ousadia em iniciar a publicação de HQ no jornal A Nação, a fundação do Grande Consórcio de Suplementos Nacionais e da Editora Brasil-América Limitada, para falar apenas alguns eventos – e trazer como exemplo a Edição Maravilhosa – uma coleção que une literatura e quadrinhos – queremos resgatar parte da memória e da história editorial voltada para o público infantil e juvenil brasileiro, para que mais e mais gerações tenham contato, em tempos digitais, com a arte sequencial gráfica em seus primórdios no país.
1 Doutora em História e Assistente em Documentação da Fundação Biblioteca Nacional.
[2] O Comics Code Authority foi elaborado pelos editores de quadrinhos estadunidenses, em resposta às pressões ocasionadas pelas políticas macarthistas contra o comunismo e demais questões de cunho ideológico. As concepções conservadoras do senador Joseph MacCarthy, embasadas em teorias psiquiátricas do médico alemão Fredric Wertham, atingiram em cheio o mercado editorial dos Comic Books, levando escolas e núcleos familiares a proibirem a leitura de HQ pelas crianças. Os editores, então, estabeleceram o código para dar legitimidade às HQ consideradas “boas” para os jovens leitores.
Referências
Impressos:
ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira. A História da Fotorreportagem no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Campus/Fundação Biblioteca Nacional, 2008.
CIRNE, Moacy; MOYA, Álvaro de (orgs). Literatura em Quadrinhos no Brasil: acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Biblioteca Nacional, 2002.
EDIÇÃO MARAVILHOSA. Rio de Janeiro: Editora Brasil América Limitada, 1948-1962.
GONÇALO JUNIOR. A Guerra dos Gibis. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
PINA, Patrícia Kátia da Costa Pina. “A Literatura em Quadrinhos e a formação do leitor hoje”. IN: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e Literatura: Diálogos Possíveis. São Paulo: Criativo, 2014.
MESQUITA, Samira Nahid de. O Enredo. São Paulo: Editora Ática, 1987.
VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (orgs.). “Introdução”. IN: Muito além dos quadrinhos: análise e reflexões sobre a 9ª arte. São Paulo: Devir, 2009.
VERGUEIRO, Waldomiro. Panorama das histórias em quadrinhos no Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2017.
Digitais:
ABAD-SANTOS, Alex . The insane history of how American paranoia ruined and censored comic books. IN: VOX, 2015. Disponível em:https://www.vox.com/2014/12/15/7326605/comic-book-censorship. Acesso em: 15/08/2019.
BIBLIOTECA NACIONAL. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1996. Disponível em: http://hdb.bn.gov.br/DocReader/402630/1378 ehttp://hdb.bn.gov.br/DocReader/402630/49066. Acesso em: 18/09/2023.
CASSONI, Raul. Censura nas HQs: O Código dos Quadrinhos. IN: MAXIVERSO, 2016. Disponível em:http://maxiverso.com.br/blog/2016/09/11/censura-nas-hqs-o-codigo-dos-quadrinhos/. Acesso em: 15/08/2019.
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SENATE Committee on the Judiciary. Comic Books and Juvenile Delinquency, Interim Report. Washington, D.C.: United States Government Printing Office, 1955. Disponível em:https://www.visitthecapitol.gov/exhibitions/artifact/code-comics-magazine-association-america-inc-1954. Acesso em: 15/08/2019.
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