Edição Maravilhosa: a Literatura através das Histórias em Quadrinhos

por Raquel França dos Santos Ferreira (SACPS/FBN)1

Quando o jornalista Adolfo Aizen (1904-1991), aos 27 anos, arrumou as malas e partiu em viagem para os Estados Unidos, um convite feito pelo Touring Club do Brasil, no ano de 1933, ele tinha algumas ideias na cabeça. Mas jamais poderia imaginar as portas que viriam a se abrir, ao longo de sua carreira.

De origem judaica e russa, a família Aizen veio para o Brasil devido às perseguições contra os judeus levadas a efeito durante o reinado do czar Nicolau II. Primeiro, ficaram em São Paulo (SP) e, com a morte prematura do pai, a viúva e seus oito filhos se transferiram para Salvador (BA), onde tinham parentes que poderiam auxiliar nas despesas da família. Mudaram-se para o Rio de Janeiro em 1922, em busca de melhores colocações de emprego para os irmãos mais velhos.

No início da década de 1930, Adolfo Aizen começou a trabalhar em uma das maiores gráficas do Rio de Janeiro. A Empresa O Malho que produzia, dentre outras publicações, a revistinha em quadrinhos O Tico-Tico – a primeira do gênero no Brasil, voltada para crianças e jovens. Não foi à toa que Aizen começou a se interessar por esse tipo de publicação: dinâmico, unindo texto e imagens, as historinhas transmitiam várias noções às crianças e podiam ser usadas de diversas formas.

O Tico-Tico
Veja aqui a primeira edição de O Tico-Tico: http://memoria.bn.br/DocReader/153079/1

Os quadrinhos e charges, que seriam a inspiração para revistinhas em quadrinhos, circulavam no Brasil desde meados do século XIX, em especial, pelas mãos do ítalo-brasileiro Ângelo Agostini (1843-1910). Suas produções, inicialmente, eram voltadas para o público adulto, devido à crítica social e política que continham. A Vida Fluminense e Revista Illustrada, ambas editadas por Agostini, são publicações fundamentais para quem quer conhecer tanto a arte gráfica operada pelo desenhista, quanto as inclinações sociais e políticas da época.

Conheça aqui as edições de A Vida Fluminense (1868): http://memoria.bn.br/DocReader/709662/1
Veja aqui a primeira edição da Revista Illustrada (1876): http://memoria.bn.br/DocReader/332747/1

Naquelas publicações, Agostini trouxe ao leitor “As Aventuras de Nho-Quim” (A Vida Fluminense, 1869) e “As Aventuras de Zé Caipora” (Revista Illustrada, 1883) que, junto com O Tico-Tico também editada por ele, seriam as primeiras histórias em quadrinhos existentes no Brasil – ainda sem vários aspectos gráficos, como balões de diálogo e linhas cinéticas, que lhes seriam tão marcantes a partir da década de 1930.

A popularização dos traços dos quadrinhos, possibilitada pelos avanços no setor gráfico – como a incorporação de técnicas que uniam desenho e texto em um mesmo papel – encontra terreno fértil na porção norte da América (ANDRADE, 2008). Nos EUA, logo vão surgir as revistinhas dedicadas às histórias de personagens infantis, heróis, caubóis, e uma infinidade de vilões. Da política ao entretenimento, passando pela sátira e pelo humor, os comics, como são hoje conhecidos, chegam ao Brasil com maior intensidade após 1933, viajando na bagagem de Adolfo Aizen.

Na viagem aos Estados Unidos citada no início desse texto, dedicada a ações de aperfeiçoamento – uma ação do Touring Club do Brasil –, Aizen entrou em contato com as primeiras revistinhas de heróis, vendidas nas bancas de jornais estadunidenses. Ao voltar ao Brasil, com a mala repleta de projetos editoriais, apresentou ao Roberto Marinho – então editor do jornal O Globo – a proposta de editar, nas páginas do jornal, um suplemento com historinhas infantis em quadrinhos. Diante da recusa, levou seu projeto para o jornal A Nação, de propriedade de João Alberto Lins de Barros que, aceitando o desafio, passou a publicar o Suplemento Juvenil, entre 1934 e 1937 (GONÇALO JUNIOR, 2004).

Veja mais edições de Suplemento Juvenil: http://memoria.bn.br/DocReader/182737/1

A essa época, Aizen deu o seu primeiro salto no mundo do empresariado editorial: fundou a editora Grande Consórcio de Suplementos Nacionais (1937-1939). A partir dessa editora, Aizen lançou as publicações: Mirim (1937) e O Lobinho (1939), além de dar continuidade ao Suplemento Juvenil, já não mais publicado pelo jornal A Nação.

Conheça mais sobre a publicação Mirim: http://memoria.bn.br/DocReader/177636/10

Paralelamente a esse cenário das edições de quadrinhos nacionais despontaria, nos Estados Unidos, na década seguinte, um outro editor russo: Albert Lewis Kanter (1897-1973). Radicado nos EUA desde 1904, nos anos 1940 Kanter deu início à empreitada de publicar revistas para crianças e jovens, e acabaria criando a coleção Classic Comics, para Elliot Publishing Company. Em 1942, ela passaria a ser publicada pela Gilberton Company, Inc. e, em 1947, teria seu nome modificado para Classics Illustrated (1941-1962). Ao total, foram 169 fascículos dedicados a adaptar, para os quadrinhos, obras de literatura clássica europeia e americana. Com o firme propósito de difundir literatura entre o público infantil, Kanter abriu as portas para que as Histórias em Quadrinhos fossem levadas para os lares estadunidenses.

Os principais autores publicados na coleção de Lewis Kanter foram Alexandre Dumas e Júlio Verne, seguidos por Conan Doyle, Vitor Hugo, e por autoras como Emily e Charlotte Brontë, Anna Sewell, Jane Porter, George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans), Mary Shelley, cada uma com uma obra transposta para HQ. Além disso, há cerca de dez obras de autores estrangeiros anônimos quadrinizadas na coleção.

No Brasil, Adolfo Aizen sempre em contato com o mundo editorial americano – iniciou a sua segunda incursão como empresário no ramo editorial: fundou a Editora Brasil-América Limitada (EBAL/1945-1995), empresa que seria dedicada a publicar livros infantojuvenis, obras didáticas mas, sobretudo, Histórias em Quadrinhos. O império editorial de Aizen chegou a publicar mais de 40 títulos, atingindo um volume de 150 mil fascículos produzidos por mês, e circulando em todo o território nacional.

E é aí que entra a coleção Edição Maravilhosa. Com cerca de 200 fascículos em sua primeira série, além de publicar as obras da congênere Classic Comics/Classics Illustrated, a Edição Maravilhosa também quadrinizava obras da literatura brasileira dos séculos XIX e XX. A publicação contou com três séries: a primeira circulou entre 1948 e 1962; a segunda, entre 1958 e 1960 – reedição das primeiras 24 histórias da primeira série; a terceira, no ano de 1967 – com mais dez fascículos reeditados. Em 1970 a editora lançou um fascículo inédito: “A Bagaceira” de José Américo de Almeida. Paralelamente a essas séries, foram publicadas ainda: Edição Maravilhosa Especial, em dezembro de 1958; Júlio Verne, entre 1974 e 1975, e Mini-Heróis, em 1978.

A Edição Maravilhosa trazia, em suas capas, as indicações dos autores das obras literárias quadrinizadas. Em algumas edições havia também referência aos ilustradores da capa e roteiristas daquele número. Entre as edições nº 20 (1950) e nº 163(1958) sinalizava-se a indicação Classics Illustrated, fazendo menção à obra que inspirou a coleção, cujos direitos de propriedade autoral pertenciam, naquela época, a Gilberton Company, Inc.

Na contracapa havia informações sobre demandas dos leitores, biografias de alguns autores das obras originais, dicas sobre como ler as histórias com as crianças e orientação para que se buscassem as obras literárias originais. Havia também informações sobre cidades europeias e curiosidades históricas. O gênero textual predominante é o romance literário, entretanto, aparecem o romance histórico e as biografias, como as de Alberto Santos Dumont e Lima Barreto.

As revistas da primeira série da Edição Maravilhosa traziam a indicação de periodicidade mensal, entretanto, durante os anos de 1954 e 1959, as publicações circulavam duas ou três vezes ao mês. Além disso, até 1951 havia a observação, na capa, de que as obras eram destinadas a “maiores de 12 anos”. A partir de 1954 passam a trazer a indicação “para adultos”, até o final da coleção, em 1962.

No ano de 1949, foi lançado o primeiro fascículo dedicado à quadrinização de obras literárias nacionais. A obra escolhida foi “O Guarani”, de José de Alencar. Após essa, outras 53 obras nacionais foram transportadas para o formato Histórias em Quadrinhos. O autor nacional com mais livros quadrinizados foi José de Alencar, com oito obras, seguido por José Lins do Rego, com seis títulos. Jorge Amado e Bernardo Guimarães aparecem com três obras cada.

A coleção também é caracterizada pela participação feminina, pois abriu as portas para a quadrinização de romances escritos por mulheres brasileiras. Das autoras, destaca-se Dinah Silveira de Queiroz, com duas obras transportadas para HQ. Mas também encontramos Lúcia Benedetti, Sra. Leandro Dupré, Ofélia Fontes, dentre outras.

Fortemente marcada pela influência do Código de Autoridade dos Quadrinhos (Comics Code Authority – EUA, 1954)[2], que determinava quais as linguagens, imagens e temas seriam os mais apropriados para uma HQ infantojuvenil, a Edição Maravilhosa apresenta sinais de seleção de imagens e texto para que se adequassem às normas elaboradas pela EBAL – à semelhança do Código citado, Adolfo Aizen elaborou uma cartilha de normas que a equipe de editoração da revista deveria seguir, direcionando as histórias de modo que evitassem, da melhor maneira possível, embates com as alas mais conservadoras da sociedade brasileira. O principal exemplo desse tipo de censura é a mudança na faixa etária, com a adoção da indicação de que as revistas seriam para o público adulto, após 1954.

Afinal, quais os propósitos dessa coleção? Primeiro, estimular a leitura das obras clássicas através dos quadrinhos – algo que era sinalizado nas próprias revistinhas, que traziam a orientação de que o quadrinho era apenas uma parte da historinha, devendo ser lida na íntegra em sua obra original. Depois, procurar desmistificar as HQ como material impróprio para crianças e jovens, buscando unir exemplares de literatura clássica – eleita como “boa literatura” para alguns setores conservadores da sociedade – à uma linguagem mais voltada para jovens.

Certamente, Histórias em Quadrinhos e Literatura são artes que, embora detenham características, estilos e estruturas próprias, dialogam entre si de diversas formas. Imagens e palavras compõem, juntas, textos complexos e polissêmicos. Apesar de ser uma transposição, muitas vezes com a condensação da obra clássica, a riqueza dos desenhos e detalhes das HQ as tornava obras singulares. Enquanto na Literatura o enredo é apresentado, predominantemente, através do texto verbal, ocasionalmente ilustrado, a sequência gráfica das HQ, bebendo na arte cinematográfica da sequência fílmica de quadros, expõe o enredo através das ilustrações, eventualmente narradas por textos verbais (VERGUEIRO; RAMOS, 2009).

Para finalizar, sem pretendermos esgotar o tema, ao fazermos o breve exercício de juntar algumas das pontas da trajetória de Aizen – a ida aos Estados Unidos, a ousadia em iniciar a publicação de HQ no jornal A Nação, a fundação do Grande Consórcio de Suplementos Nacionais e da Editora Brasil-América Limitada, para falar apenas alguns eventos – e trazer como exemplo a Edição Maravilhosa – uma coleção que une literatura e quadrinhos – queremos resgatar parte da memória e da história editorial voltada para o público infantil e juvenil brasileiro, para que mais e mais gerações tenham contato, em tempos digitais, com a arte sequencial gráfica em seus primórdios no país.

1 Doutora em História e Assistente em Documentação da Fundação Biblioteca Nacional.

[2] O Comics Code Authority foi elaborado pelos editores de quadrinhos estadunidenses, em resposta às pressões ocasionadas pelas políticas macarthistas contra o comunismo e demais questões de cunho ideológico. As concepções conservadoras do senador Joseph MacCarthy, embasadas em teorias psiquiátricas do médico alemão Fredric Wertham, atingiram em cheio o mercado editorial dos Comic Books, levando escolas e núcleos familiares a proibirem a leitura de HQ pelas crianças. Os editores, então, estabeleceram o código para dar legitimidade às HQ consideradas “boas” para os jovens leitores.

Referências

Impressos:

ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira. A História da Fotorreportagem no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Campus/Fundação Biblioteca Nacional, 2008.

CIRNE, Moacy; MOYA, Álvaro de (orgs). Literatura em Quadrinhos no Brasil: acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Biblioteca Nacional, 2002.

EDIÇÃO MARAVILHOSA. Rio de Janeiro: Editora Brasil América Limitada, 1948-1962.

GONÇALO JUNIOR. A Guerra dos Gibis. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

PINA, Patrícia Kátia da Costa Pina. “A Literatura em Quadrinhos e a formação do leitor hoje”. IN: RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro; FIGUEIRA, Diego. Quadrinhos e Literatura: Diálogos Possíveis. São Paulo: Criativo, 2014.

MESQUITA, Samira Nahid de. O Enredo. São Paulo: Editora Ática, 1987.

VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo (orgs.). “Introdução”. IN: Muito além dos quadrinhos: análise e reflexões sobre a 9ª arte. São Paulo: Devir, 2009.

VERGUEIRO, Waldomiro. Panorama das histórias em quadrinhos no Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2017.

Digitais:

ABAD-SANTOS, Alex . The insane history of how American paranoia ruined and censored comic books. IN: VOX, 2015. Disponível em:https://www.vox.com/2014/12/15/7326605/comic-book-censorship. Acesso em: 15/08/2019.

BIBLIOTECA NACIONAL. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1996. Disponível em: http://hdb.bn.gov.br/DocReader/402630/1378 ehttp://hdb.bn.gov.br/DocReader/402630/49066. Acesso em: 18/09/2023.

CASSONI, Raul. Censura nas HQs: O Código dos Quadrinhos. IN: MAXIVERSO, 2016. Disponível em:http://maxiverso.com.br/blog/2016/09/11/censura-nas-hqs-o-codigo-dos-quadrinhos/. Acesso em: 15/08/2019.

A GAZETA: edição infantil. São Paulo: A Gazeta, 1929. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/764507/1. Acesso em: 14/10/2023.

MUNDO INFANTIL: a revista dos garotos. RIo de Janeiro: Casa Editora Vecchi, 1930. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/388696/433. Acesso em: 10/10/2023.

REVISTA ILLUSTRADA. Rio de Janeiro: Officina Lithographica a vapor da Revista Illustrada, 1876. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/332747/1. Acesso em: 10/10/2023.

SENATE Committee on the Judiciary. Comic Books and Juvenile Delinquency, Interim Report. Washington, D.C.: United States Government Printing Office, 1955. Disponível em:https://www.visitthecapitol.gov/exhibitions/artifact/code-comics-magazine-association-america-inc-1954. Acesso em: 15/08/2019.

SUPLEMENTO JUVENIL. Rio de Janeiro: Grande Consórcio de Suplementos Nacionais, 1937. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/182737/1. Acesso em: 10/10/2023.

O TICO-TICO. Rio de Janeiro: O Malho, 1905. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/153079/1. Acesso em: 10/10/2023.

A VIDA FLUMINENSE: folha joco-séria illustrada. Rio de Janeiro, 1868. Disponível: http://memoria.bn.br/DocReader/709662/1. Acesso em: 10/10/2023.

A Ilustração de Livro para Crianças no Brasil: Prelúdio de uma História em Construção

por Graça Lima e Alexandre Guedes

Quando pensamos em algo, geralmente temos uma visão daquilo que reflete nossa percepção de mundo ou de situações completamente fora da nossa esfera de compreensão pragmática. A grandeza que habita nosso senso de transformação nos deixa sempre muito próximos do intangível, pois possuímos uma qualidade inerente a todo e qualquer ser humano que é a capacidade de imaginar. Em caráter específico, essa potência gera a união de duas formas distintas de expressão: a palavra e a imagem. Tal relação se manifesta através de uma aproximação milenar entre a literatura e a arte; na confluência destas duas, surge a ilustração de livro. Ilustrar é dar luz a uma ideia através de uma abordagem visual. A etimologia da palavra marca perfeitamente seu sentido: a sua forma originária illustrare, em latim, significa fazer brilhar ou iluminar.

As narrativas visuais possuem raízes profundas e remotas. Desde o paleolítico superior o homem comunica ideias através de imagens. Os desenhos rupestres, espalhados em diferentes espaços e produzidos em épocas distintas, por exemplo, registram um modo de comunicação e organização do homem com o mundo. Se fizermos um passeio pelo tempo desde a arte parietal e das cerâmicas chinesas encontradas na Caverna Xianrendong, há mais de 20.000 anos, passando pelo Egito com o Livro dos Mortos, Mesopotâmia, Roma, Grécia, registrando o surgimento do papel na China durante o período da Dinastia Han, contemplando os rolos ilustrados na Índia, e a grande variedade de registros das tradições da cultura árabe, explorando a diversidade de expressões do continente africano, ou das civilizações pré-colombianas – de norte a sul, do oriente ao ocidente – veremos que a arte de ilustrar, narrar com imagens está sempre presente.

A ilustração impressa em livros possui uma cronologia que está relacionada à Antiguidade e, fundamentalmente, ao surgimento do papel e da gravura na China. Na Europa, durante a Era Vitoriana (1837-1901), a produção editorial se consolida e a indústria do livro infantil ganha força, distinguindo-se pela intrínseca relação que se estabelece entre texto e imagem. Assim, a ilustração de livro começa, aos poucos, a ser percebida enquanto uma forma de expressão artística. Entre os anos de 1840 e 1930, nomes como J. J. Grandville (1803-1847), John Tenniel (1820-1914), Richard Doyle (1824-1883), Gustave Doré (1832-1883), Walter Crane (1845-1915), Kate Greenaway (1846-1901), Arthur Rackham (1867-1939), Aubrey Beardsley (1872-1898), dentre outros expoentes contribuem para a expansão e consolidação desse gênero lítero-visual que no século XX torna-se parte integrante da vida cotidiana de crianças e jovens. Autores como Brigid Peppin (1941-) e Simon Houfe (1942-) costumam designar o período que vai de meados do século XIX até o primeiro pós-guerra como “a era de ouro da ilustração” (the golden age of illustration).

No Brasil essa jornada não possui um caráter linear, pois até a chegada da família real portuguesa ao país, era vedado qualquer tipo de produção editorial. Com a criação da Imprensa Régia em 1808, inicia-se um novo período, o que possibilita o aparecimento de uma indústria que só irá ganhar fôlego a partir da segunda metade do século XIX na cidade do Rio de Janeiro, pelas mãos de desenhistas como o alemão Henrique Fleiuss (1824-1882), o ítalo-brasileiro Angelo Agostini (1843-1910) e imigrantes de origem portuguesa.

A influência da ilustração portuguesa na produção editorial brasileira foi marcada por nomes como Bordalo Pinheiro (1846-1905) e Julião Machado (1863-1930). Este último, em sua passagem pelo Brasil, além de contribuir com seu traço para diversos periódicos, ilustrou “Lendas Brasileiras”, uma coleção de 27 contos para crianças, da escritora carioca Carmen Dolores (1852-1911). Na publicação, Machado dá vida a personagens do nosso folclore como o saci-pererê e a mula sem cabeça. O livro de Dolores provavelmente é uma das primeiras obras ilustradas no país para o público infantil que trabalha com o imaginário local, ou seja, desvinculado de um padrão literário eurocêntrico. Todavia, esse tipo de abordagem só ganhará fôlego, tratando-se especificamente de que é dirigido às crianças, no começo da década de 1920.

O trabalho de ilustradores estrangeiros faz parte do intrincado mosaico que constitui a história da ilustração de livro para crianças no Brasil. Isto porque nosso mercado editorial – no que se refere ao segmento infantil, entre a segunda metade do século XIX e as primeiras duas décadas do XX – esteve voltado basicamente para uma produção de caráter didático e a reprodução de material importado. Um bom exemplo disso está relacionado a publicações de editoras como Garnier e Laemmert sediadas no Rio de Janeiro, no período em relevo. Dentre as obras em questão, destacamos dois livros da Garnier que fazem parte do acervo da Biblioteca Nacional e refletem o contexto mencionado: o primeiro é “Scenas da Vida Privada dos Animais”, com ilustrações do francês Benjamin Rabier (1864-1939), e o segundo, “As Peripécias da Aviação”, ilustrado pelo espanhol Joaquín Xaudaró (1872-1933). Nos dois casos, apesar do pioneirismo relativo ao campo em questão, tratam-se de obras cuja matriz é invariavelmente europeia. A procura de uma identidade irá gerar um movimento de nacionalização do livro infantil, iniciado por alguns livreiros-editores. Segundo a pesquisadora Andréa Borges de Leão, Pedro da Silva Quaresma e Francisco Alves de Oliveira foram os pioneiros desse novo mercado. Criando um novo estilo de edição com uma escrita adaptada às nossas crianças, Quaresma tencionava abrasileirar os livros infantis, oferecendo uma coleção de contos de fadas, brincadeiras e teatrinhos escritos na linguagem corrente do país. Para tanto, contratou o conhecido escritor Figueiredo Pimentel e o ilustrador Julião Machado. Dessa união, surgiu, em abril de 1894, o livro “Contos da Carochinha”, com 61 contos adaptados da tradição oral que abriram o caminho para muitos outros: “Histórias da Avozinha” (1896), “Histórias da Baratinha” (1896), “Histórias do Arco da Velha”, “Histórias de Fada”, “Contos do Tio Alberto”, “Os Meus Brinquedos”, “Teatrinho Infantil” (1897), “O Álbum das Crianças”, e mais, todos alcançando grande sucesso de vendas. Em 1906, o semanário “O Tico-Tico” oferece como prêmios ao concurso “F” exemplares da coleção de livros – “A Casa do Saltimbanco”, “As Férias”, “Os Desastres de Sofia” e “As Meninas Exemplares” ­– produzidos pela livraria Francisco Alves, confirmando a existência de um público já formado que se empenharia em vencer para ganhar livros.

No início do século XX, ocorreu um intenso fluxo de mudanças no mundo todo, atingindo em cheio vários níveis da experiência social. Em nenhum período anterior na história das civilizações a humanidade foi envolvida num processo tão dinâmico de transformação de seus hábitos, convicções e modos de percepção. É a partir desse momento que o impacto da Revolução Científico-Tecnológica, intensificada nas últimas décadas do século XIX, é sentido em sua plenitude, alterando por completo o ritmo da vida das pessoas. A “Exposição Universal de 1900” foi um marco desse processo. O que havia de mais avançado na indústria da época foi ali reunido, consagrando, de maneira definitiva, a modernidade.

No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, o impacto das conquistas alcançadas pelo mundo desenvolvido impulsionou as elites locais na implementação de um projeto modernizador que alteraria de maneira irreversível a sociedade carioca e, por conseguinte, a brasileira. Para que fosse executado, o projeto se baseou na identificação de um poderoso conjunto de símbolos, instituições e usos metropolitanos, caracterizados basicamente por uma série de reformas urbanas.

O discurso desenvolvimentista externa a sensação de um país em harmonia com as forças do progresso em curso, desligando-se da letargia de seu passado. O almejado projeto de sociedade moderna e universal ainda não tem força para superar o Brasil de hábitos culturais arcaicos. É nítido o contraste entre cidades que coexistem – a cidade letrada e a cidade real – na qual uma minoria dominante detém o universo simbólico, criando os padrões culturais, os mitos, os símbolos e as ideias que vão legitimar o seu poder sobre as várias esferas urbanas. Projetada pelas classes dominantes, a “cidade ideal” é bela e monumental; porém, uma ilusão passageira que entorpece os sentidos e apaga a realidade. A modernização assinala a introdução de novos padrões de consumo instigados por uma crescente onda publicitária, além de uma imensa interação entre os periódicos e a difusão de práticas culturais. Meios de comunicação impressos, como as revistas ilustradas em seus mais variados títulos, estabelecem novos padrões de estilo e comportamento. Baseadas no uso sistemático da ilustração e da fotografia, as revistas seduziam seus consumidores através da imagem, enaltecendo as conquistas da civilização. Os principais fatos da vida política e social da nação passam a ser expressos nessas publicações, que se tornam um instrumento eficaz na propagação dos valores culturais da Belle Époque brasileira, em virtude de seu caráter de momento – condensado e de fácil consumo!

As revistas revelam, ainda, a cidade como um palco, abrindo-se para viver o projeto de ordem e progresso. Impulsionado pelo ímpeto transformador do começo do século XX, o Rio de Janeiro aprendeu a se amar e a se ver positivamente através das páginas de suas inúmeras revistas de variedades. As publicações cariocas celebram o progresso, na criação de seu próprio mito. Expressão das exigências da vida moderna, segundo Ana Luiza Martins, “as revistas ilustradas passam a ser, a partir do início do século XX, a modalidade preferencial da população leitora” (2001, p. 42).

Como resultado de um periodismo triunfante, várias revistas surgem no universo carioca: “D. Quixote”, “O Diabo”, “Tagarela”, “O Martelo”, “Avenida”, “Revista da Semana”, “O Tico-Tico”, “O Malho”, “Careta”, “Fon-Fon”, “A Cigarra”, “Kosmos”, “Renascença”, “A Ilustração Brasileira” e “O Cruzeiro”. A “Revista da Semana”, por exemplo, trabalhava com tricromia e ilustração fotográfica, inovando essa área acostumada a ilustrações litografadas, tornando-se padrão de qualidade. A “Kosmos”, lançada em 1904, é tida como um dos periódicos mais sofisticados de então. E “Fon-Fon”, surgindo três anos mais tarde, retratava a vida cotidiana do Rio de Janeiro em artigos leves e ilustrações abundantes, razões de seu sucesso entre os leitores do país. Assim, neste período, um dos segmentos nos quais os ilustradores tiveram mais espaço para atuar na indústria editorial foram as revistas ilustradas.

Como precursores do livro infantil, os periódicos tiveram uma importância decisiva para a criação de uma nova categoria de público leitor. Voltado especificamente para as crianças e criado em 11 de outubro de 1905 pela Sociedade Anônima “O Malho”, o semanário “O Tico-Tico”, por exemplo, foi responsável pela formação de gerações de leitores. Inspirado na revista francesa La Semaine de Suzette, o almanaque recebeu esse nome em homenagem ao passarinho faceiro e irrequieto. Depois de inúmeras publicações de vida breve, “O Tico-Tico” representava uma iniciativa audaciosa e inovadora para a imprensa da época, num momento em que não havia material de leitura especificamente dirigido à infância. Criados para o semanário, personagens como Kaximbown, Zé Macaco, Faustina, Chico Preguiça, Lamparina, Pandareco, Chiquinho e principalmente o trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona eram fascinantes e marcaram homens de expressão como Rui Barbosa e Carlos Drummond de Andrade. A revista teve grandes colaboradores, como Coelho Neto (1864-1934), Carlos Manhães (sem data), Bastos Tigre (1882-1957), Américo Callia (sem data) e o acadêmico Josué Montello (1917-2006), além de ilustradores de destaque como K. Lixto (1877-1957), J. Carlos (1884-1950), Alfredo Storni (1881-1966), Oswaldo Storni (1909-1972), Ivan Wasth Rodrigues (1891-1957), Monteiro Filho (sem data), Luis Sá (1907-1979), Max Yantok (1881-1964) e Francisco Acquarone (1898-1954). “O Tico-Tico” teve tanta importância quanto a obra de Monteiro Lobato (1882-1948), que é considerado o pai da literatura infantil brasileira, levando-se em conta que ambos os autores lutaram pela valorização e pelo reconhecimento da cultura nacional. Durante cinquenta anos, essa revista determinou uma nova etapa na história da nossa literatura para crianças e jovens. Apesar de ter deixado de circular definitivamente em 1962, “O Tico-Tico” influenciou diversas gerações, abrindo caminho para outras experiências de maior vulto no campo das histórias em quadrinhos e da literatura infanto-juvenil.

Segundo o pesquisador Chico Homem de Melo, do fim do século XIX até os anos de 1920, em decorrência de um intercâmbio plástico, a confluência de saberes entre a Academia e o autodidatismo deságua na produção cotidiana de redações, editoras e agências de propaganda (2011, p. 20). Isso proporcionou o surgimento do ilustrador-designer e abriu caminho para o desenvolvimento de uma visualidade conformada aos meios de reprodução, o que implica, neste recorte de tempo, na manufatura de desenhos eminentemente gráficos. Imagens nas quais o traço (linhas de contorno, hachuras ou configurações plenamente preenchidas) prevalece em detrimento de uma gradação sutil de valores de claro-escuro, mesmo quando se fazia o uso da cor. Tal característica marcou sobremaneira as imagens publicadas em revistas ilustradas e livros da época. Dentre os artistas que exploraram tais relações, destacamos K. Lixto, Raul Pederneiras (1874-1953) e J. Carlos. Os dois primeiros, como desbravadores de um território ainda inóspito e sob a influência, não muito exagerada, de uma estética Art Nouveau (1890-1914); o terceiro, na esteira dessas experiências, assimilando e reprocessando o caráter dominante de seus contemporâneos. Todos tiveram uma intensa participação na produção editorial nacional, mas sem dúvida foi J. Carlos quem mais se sobressaiu naquele contexto. Ele extrapola a dimensão de seu próprio trabalho por estar sempre se reinventando, principalmente a partir do primeiro pós-Guerra.

As ilustrações do período descendem do desenho de humor e da pintura. Essas duas referências logo se combinam, sendo operadas por exímios e ecléticos ilustradores-designers, que constituem a primeira geração de profissionais nascidos no país. Dentre eles, há dois perfis razoavelmente distintos: de um lado, aqueles que atuam regularmente nas publicações de cunho comercial, destinadas a plateias numerosas e diversificadas, […]; de outro, aqueles […] com atuação mais episódica. No mais das vezes, são artistas […] ocupados com as questões propostas pelo modernismo […]. O elo […] comum aos dois grupos é a capacidade de pensar a ilustração não apenas como imagem autônoma, mas como estruturadora do campo gráfico e já concebida de maneira integrada ao texto (Id.,  p. 20).

O perfil traçado acima expressa a postura formal de diversos ilustradores que, no caso específico do livro, também foi estimulada e promovida pela ação visionária de editores como Lobato. A história do livro no Brasil pode ser dividida em “antes e depois de Monteiro Lobato”. Sem a sua presença, provavelmente, tudo teria sido bem diferente. Foi ele quem, nos anos de 1920, vislumbrou que um país como o Brasil precisava de um parque gráfico à altura de suas necessidades. A partir desse momento, o mercado editorial passa a diferenciar a produção literária produzida para adultos e crianças. O livro ilustrado para crianças marcava a produção editorial e apontava para a ampliação desse mercado. Segundo essa perspectiva, pode-se apresentar seu pioneirismo como sendo a mola propulsora da literatura infantil no Brasil. O livro “A Menina do Narizinho Arrebitado”, de Lobato, contendo desenhos de Lemmo Lemmi, mais conhecido por Voltolino (1884-1926), é também um marco na história do livro ilustrado no país. Em artigo do periódico “O Jornal” publicado no dia 25 de abril de 1921, o crítico literário e professor Tristão de Ataíde (1893-1983) emitiu o seguinte comentário sobre a obra:

Por ele, a criança criará gosto pela leitura; sentirá que o livro não é apenas um instrumento de disciplina, mas um campo maravilhoso para a expansão de um mundo interior, reprimido ou apenas ressentido. É um livro que estimula a vida, fecunda a imaginação, desperta a curiosidade (Apud AZEVEDO; CAMARGO; SACCHETTA, 1997, p. 158).    

Lobato era apaixonado por pintura e sempre manifestou seu desejo de ter cursado uma escola de Belas Artes. Entrou para a Faculdade de Direito por imposição do seu avô e também tutor, após a morte dos pais. Tornou-se escritor, outra vertente artística, e, embora tenha desistido das artes plásticas, isso teve reflexos em toda a sua obra. Mas ele nunca se conformou com isso: “No fundo, não sou literato; sou pintor. Nasci pintor, mas, como nunca peguei nos pincéis a sério […], arranjei esse derivativo de literatura, e nada mais tenho feito senão pintar com palavras”. Em 1909, chegou a participar de um concurso de cartazes no Rio de Janeiro, colaborando com desenhos para revistas como “Fon-Fon” e “Vida Moderna”, além de ilustrar a primeira edição do livro “Urupês”. Na década de 1910, tornou-se um dos mais importantes críticos de arte na cidade de São Paulo. Pintou até os últimos dias de vida e nos legou histórias cheias de cores e formas.

O grande diferencial de Monteiro Lobato como editor foi ter tratado o livro como o produto que ele, de fato, é. O autor sempre demonstrou grande interesse pela qualidade e estética do suporte de seus textos, valorizando o design gráfico de todas as suas publicações. Logo percebeu a importância de investir em elementos “concretos” dos livros, tais como capa, papel de qualidade e ilustrações bem produzidas. Seu trabalho como editor é de grande importância, inclusive na valorização do ilustrador e da ilustração. O investimento nesses aspectos de ordem visual foi um diferencial em suas edições. Grandes ilustradores como Voltolino, Belmonte (1896-1947), J. U. Campos (1912-1972), André Le Blanc (1921-1998), Jean Gabriel Villin (sem data) e Kurt Wiese (1887-1974) trabalharam para Lobato.

A ilustração das capas fazia parte da estratégia para atrair o leitor para as novas e mais baratas edições em brochura. Lobato queria construir uma sólida editora e confiava na sua experiência para a seleção de títulos. No entanto, quanto aos aspectos visuais, escolheu grandes ilustradores para elaborar capas desenhadas, tornando seu produto de fato mais atraente aos olhos do consumidor. E foi então que “[…] os balcões das livrarias se encheram de livros com capas berrantes, vivamente coloridas, em contraste com a monotonia das eternas capas amarelas das brochuras francesas” (Id., p. 131).

No mesmo compasso empreendido por Lobato, a cidade de São Paulo na década de 1910 assiste ao crescimento de sua jovem indústria gráfica e passa a ocupar, juntamente com o Rio de Janeiro, em um curto espaço de tempo, a posição de centro editorial do país. Interessada em resolver o problema de papel de qualidade para livros, a Editora Weiszflog começou a adquirir ações da Companhia Melhoramentos, fabricante de papéis, e em 1920, por decisão tomada em assembleia, deu-se a fusão das duas empresas. Já em 1928, sua produção era de 670 mil exemplares. Entre os 248 títulos estavam os livros da coleção Encanto e Verdade, pioneira em histórias infantis com temática nacional. No que se refere à literatura infantil, o empreendedorismo da Melhoramentos e de Monteiro Lobato (1882-1948), na publicação de obras onde a imagem exercia protagonismo, determina um passo importante para o desenvolvimento da ilustração de livro no país. O marco inicial dessa era se dá no ano de 1915, quando os irmãos Weiszflog lançam o “Patinho Feio” de Hans Christian Andersen (1805-1875), com desenhos de Franz Richter (1872-1964), também conhecido pelos nomes de Franta Richter e Francisco Richter. O trabalho desse artista gráfico representa a primeira edição a quatro cores publicada no mercado editorial brasileiro, inaugurando uma série de produções que contam com o seu traço para a Coleção Biblioteca Infantil Melhoramentos. Richter também é o responsável pela realização de boa parte do material didático editado na Cia Melhoramentos. O surto do nacionalismo pós-guerra determinou que Walter Weiszflog, em retorno de viagem a países da América do Sul que vivenciavam um momento nativista, desenvolvesse a série “Quadros Murais”, magnificamente ilustrados por Richter. Esses painéis eram utilizados no ensino primário e estiveram em todas as salas de aula do ensino público brasileiro até os anos 60. Sua atuação foi notadamente importante e inscreve-se na contribuição deixada por artistas estrangeiros, assim como no caso de Angelo Agostini, para a visualidade que abrange a constituição de nosso universo editorial. A coleção Biblioteca Infantil foi reformulada e popularizada, e seus livros passaram a ser brochuras, impressos em preto e branco, ilustrados por Oswaldo Storni, dos anos de 1930 até 1958. Storni dedicou-se eminentemente à ilustração, tendo a linha como seu meio de expressão por excelência. Era um apaixonado pela natureza e sabia retratá-la com destreza. Seu trabalho em “Aventuras de Taquara-Poca”, entre 1938 e 1945, retrata o mundo rural presente na literatura de Francisco Marins (1922-2016).

Em 1936, assim como no caso da Melhoramentos, o Ministério da Educação e Cultura investe na criação de Álbuns de Estampa através da promoção de concursos de ilustração que duraram até 1939. Estávamos numa fase nacionalista e os livros também seguiram a mesma tônica. Inserem-se nessa perspectiva editorial “O Circo”, de Santa Rosa, que ganhou prêmio e foi impresso na Bélgica, e “A Carnaubeira”, de Paulo Werneck, produzido em litografia (PAIXÃO, 1995).

Ao apresentar esse texto, nossa intenção não foi proporcionar ao leitor uma “verdade absoluta”, mas sim abrir espaço para uma percepção histórica que, ancorada em relações estéticas e de caráter editorial, permeiam o nascimento da ilustração do livro infantil no Brasil. Com isso não pretendemos descartar outros pontos de vista, sendo esta apenas uma linha de pensamento que pode se somar a outras na construção de uma identidade relativa à origem desse tipo de expressão artística voltada a um determinado aspecto da produção cultural do país.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Carmen Lucia de; CAMARGO, Maria Mascarenhas de Rezende; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato – Furacão na Botocundia. São Paulo: Editora Senac, 1997.

CAMARGO, Luís. Ilustração do Livro Infantil. Belo Horizonte: Editora Lê, 1995.

CAMARGO, Mário (Org.). Gráfica: Arte e Indústria no Brasil – 180 Anos. São Paulo: Bandeirantes Gráfica, 2003.

CARDOSO, Rafael (Org.). Impresso no Brasil, 1808-1930: Destaques da História Gráfica no  Acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Verso Brasil, 2009.

COTRIM, Álvaro. J. Carlos: Época, Vida e Obra. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1996.

DOYLE, Susan; GROVE, Jaleen; SHERMAN, Whitney. History of Illustration. New York:  Fairchild Books, Bloomsby Publishing Inc, 2018.

EDITORA ABRIL. A Revista no Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000.

LEÃO, Andréa Borges – Brasil em Imaginacão: livros impressos e leituras infantis. INTERCOM. XXVI Congresso Anual em Ciência da Comunicação,

Belo Horizonte/MG, setembro de 2003.

LIMA, Yone Soares de. A Ilustração na Produção Literária: São Paulo – Década de 20. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1985.

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em Revista: Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de República, São Paulo (1890 -1922). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / FAPESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001.

MELO, Chico Homem de; COIMBRA, Elaine Ramos. Linha do Tempo do Design Gráfico no Brasil. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

PAIXÃO, Fernando. Momentos do livro no Brasil. São Paulo: Editora Ática , 1995.

PAULA, Ademar Antonio de; CARRAMILLO NETO, Mário. Artes Gráficas no Brasil: Registros, 1746-1941. São Paulo: Laserprint, 1989.

PEPPIN, Brigid. Fantasy: The Golden Age of Fantastic Illustration. New York: Watson- Guptill, 1975. YOLANDA, Regina. O Livro Infantil e Juvenil Brasileiro: Bibliografia de Ilustradores. São Paulo: Melhoramentos; Brasília. INL, 1977.

Desenhando o Sítio do Picapau Amarelo

por Rui Oliveira

Monteiro Lobato — As primeiras leituras e as primeiras imagens.

Meu pai teve sempre o hábito de comprar livros para os filhos, apesar de todas as suas dificuldades econômicas em manter a família.  Eu me lembro de ler Lobato após a leitura de meus irmãos — eu era o caçula e os livros chegavam em minhas mãos após certo tempo.

Meu pai sempre escrevia no frontispício: “Este livro pertence aos irmãos Oliveira”. Sendo assim, Monteiro Lobato fez parte do imaginário de nossa infância, assim como as ilustrações de seus livros ficaram eternizadas em minha memória. E, pela primeira vez, confesso: eu tinha um ingênuo e impossível afeto pela Narizinho. Eu a achava bonita com sua franjinha e seu cabelo Chanel.

A minha geração leu Lobato com os traços do grande ilustrador paulista Belmonte (1896-1947). Além das lustrações dos livros de Lobato, dois outros livros despertaram o meu interesse pela imagem narrativa, e pelo sonho de um menino do subúrbio do Rio de tornar-se um dia desenhista. Foram as obras “Cazuza” de Viriato Correia, ilustrado por Renato Silva (1904-1981), e as belíssimas ilustrações em bico de pena do extraordinário Álvaro Marins (Seth) (1891-1949), em seu monumental álbum “O Brasil pela Imagem” que me alçaram a tal sonho.  Na minha mais longínqua memória, me vejo sempre com o lápis e o papel na mão desenhando. Até hoje esta paixão permanece e se renova a cada dia.

Quanto ao meu trabalho como diretor de arte na novela Sítio do Picapau Amarelo, para um recém formado e recém chegado ao país, foi um grande desafio e uma importante experiência profissional que me abriu portas futuras ao meu trabalho. Quando fui chamado para participar do projeto, em 1976, eu tinha na verdade uma pequena experiência em videografismo.  Havia feito na própria TV-Globo as aberturas das novelas “Pluft, o Fantasminha”, “Helena” e “A Moreninha”.

A minha formação adveio do design, da ilustração e do cinema de animação. Estas três linguagens plásticas foram a base inicial para realizar todo o meu trabalho na novela. Sempre achei, e continuo pensando desta forma, que o desenho é um fundamento para o criador de imagens que contam histórias. Aproveito esta oportunidade para agradecer esta iniciativa da Biblioteca Nacional em expor algumas artes que se fixaram no imaginário de gerações que assistiram à novela.  Talvez essa seja a grande função de um artista que desenha para crianças e adolescentes: criar a futura memória feliz das pessoas.

Visite a exposição virtual: Monteiro Lobato – o homem, os livros.

Aberturas e Vinhetas

Estes são os desenhos originais para o story-board da primeira abertura da novela em 1977. Considerando as caraterísticas específicas de uma novela para crianças, as aberturas e vinhetas tinham a função importante de não apenas apresentar os letreiros, mas identificar, principalmente as vinhetas,  cada história dentro da novela. Além de criar uma atmosfera mágica de empatia junto às crianças.  Com o tempo, estes visuais foram se tornando a própria memória da novela e de suas diversas aventuras. 

Procurando defini-lo conceitual e plasticamente, no meu trabalho na direção de arte da novela procurei sempre unir a tradição do artesanato da pintura e da ilustração às modernas tecnologias, inclusive à computação gráfica. Sempre com o objetivo de criar uma imagem mais humana e natural. Tenho certeza de que o encontro entre estas duas linguagens, que em absoluto não são incompatíveis, foi um dos motivos de, até hoje, as pessoas, na época crianças, se lembrarem dos desenhos e das aberturas da novela.

Visualizando a Emília pra  TV.

Para a criação dos bonecos e dos principais figurinos da novela, acredito que a maior dificuldade que tive, bem diferente dos ilustradores clássicos de Lobato, foi dar forma aos personagens em três dimensões. Aquilo que resultava bem nos desenhos de Voltolino, Belmonte, Villin, J.U. Campos e Andre Le Blanc não reagiam bem como figurinos para serem utilizados por atores. Aqui, os personagens seriam visto de todos os ângulos, sempre lembrando que estávamos fazendo um espetáculo para a TV, com suas normas e convenções. Por outro lado, eu não poderia romper radicalmente com as já tradicionais imagens quase cristalizadas por meio de gerações e gerações de leitores. O primeiro problema, quando comecei a desenhar a Emília, foi a sua tradicional e desalinhada cabeleira preta.  Nas ilustrações, era realmente engraçada, mas resultaria na TV, com a movimentação da atriz, uma imagem feia e meio fantasmagórica. Utilizei então, após muitos desenhos e testes, uma cabeleira de recortes de panos irregulares, como se fosse uma bruxinha. As cores eram de tons quentes de cádmio. A paleta de cores que fiz para todo o figurino da Emília era devido aos efeitos especiais obtidos no  Chroma key. A cabeça da personagem ficou alegre, os cabelos se movimentavam — tudo isso criou uma dinâmica que reagiu plasticamente muito bem no vídeo. Este gênero de figurino é uma escultura em movimento, uma verdadeira arte cinética.  Gostaria também de citar que os outros personagens da novela, e os cenários, eram do extraordinário e saudoso Arlindo Rodrigues.

Visualizando Visconde de Sabugosa para a TV.

O bom figurino de um personagem fantástico é quando ele possui uma verossimilhança com o real, isto não significa ser realista. A  criança aceita e se identifica com o personagem bizarro se ele for crível  ao seu olhar, à sua imaginação e ao seu coração. Este é caso do Visconde de Sabugosa. Sem dúvida, do ponto de vista de sua confecção, pelas mãos de Tia Anastácia, é um dos mais fantásticos personagens criados por Lobato. Mas a questão central era a mesma: ele é interessante como imagem ilustrada nos livros, mas como ele seria vestido por um ator? Poder andar, gesticular, correr — o figurino é a versão física e silenciosa da alma de um personagem. Não acredito, sinceramente, em criação sem pesquisa. Lembro que, naquela época, eu estudei muito os personagens de animais com roupas humanas desenhadas por Grandville (1803-1847). Mas novamente o binômio memória e imaginação funcionou.  Lembrei de um livro que li quando criança e que muito me impressionou: O Barão de Munchhausen. O desenho de Gustave Doré (1832-1883) para o Barão se eternizou em minha memória.  Todas estas confluências resultaram na forma final que encontrei para o Visconde de Sabugosa.

As fronteiras movediças entre a transcrição e a releitura.

Diante das complexas questões que envolvem a adaptação de textos literários para TV, acho oportuno refletirmos sobre os limites entre a transcrição e a livre releitura de um texto. A transcrição existiu sempre e é legítima. O compositor húngaro Franz Litsz fez transcrições para piano de peças de Mozart. O cineasta brasileiro transcreveu para cinema a obra prima de Graciliano Ramos “Vidas Secas”, com absoluta fidelidade e toda aspereza e concisão da literatura do grande escritor.

Com relação à releitura, a primeira dúvida é a seguinte: será que obras universais, representativas da eterna alma humana, precisam de adaptações aos “novos tempos” para se tornarem compreensíveis ao “leitor jovem”? No fundo, assim vejo, esta é uma atitude discriminatória à inteligência das crianças e do jovem. Jamais me passou pela cabeça “modernizar” qualquer personagem de Lobato para torná-lo palatável em nossos dias. Será que esta paráfrase, — quer dizer: transformar algo supostamente incompreensível em linguagem para que todos possam entender — não esconde uma visão conformista e conservadora do indivíduo e da própria arte?

Pessoalmente, não tenho dúvidas de que este gênero de facilitação estética, — que sempre se apresenta com a justificativa: “isto a criança não vai entender, aquilo o povo não compreende” — na verdade, é uma falácia com verniz de posição democrática. O que realmente está por trás de todo este discurso altruísta é a autocensura, é a intenção de manter as pessoas onde elas estão, não elevá-las, no fundo é o desejo conservador de vender mais facilmente a obra e obter com isso um lucro mais rápido. 

Realmente a novela Sítio do Picapau Amarelo popularizou a obra de Lobato, mas não a democratizou. Também não era essa a sua função. O conceito de releitura aparece imediatamente quando obras significativas e célebres caem no domínio público. Como foi o caso de O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, e agora a obra de Monteiro Lobato. Cair em domínio público não significa que a ruptura com a tirania, e com o ganha-pão de longínquos parentes ou amigos, vai trazer à obra de Monteiro Lobato uma nova qualidade e novas releituras em ilustração, por exemplo. Usar linguagens contemporâneas não representa necessariamente modernidade, um novo olhar gráfico sobre os textos de Lobato.

A versão em quadrinhos do Sítio, que poderia anunciar uma democratização do universo de Monteiro Lobato, realmente não se realizou. Em termos gráficos, por exemplo, os quadrinhos adotaram os estereótipos mais conservadores das historietas para crianças. Uma visível contradição com os conteúdos originais do texto e, principalmente, com as ilustrações que os caracterizaram durante anos.

Tudo se torna ainda mais grave quando este grafismo dos quadrinhos do Sítio do Picapau Amarelo passou a “ilustrar” os livros do escritor. Primeiramente, um conflito de gêneros: quadrinhos e ilustração. Qualquer gênero possui as suas convenções, o seu modo de ser — os temas alegres e amorosos das operetas permitem e solicitam um canto lírico totalmente diferente de uma trágica e densa ópera de Puccini. As translúcidas aquarelas de John Sargent são opostas aos empastes a óleo das pinturas de Lucian Freud. Não se tratam de diferentes períodos da arte, ou questão de estilo ou meio plástico, o que temos na verdade são convenções diversas, inerentes a qualquer tipo de linguagem. A convenção não significa estereótipo ou conformismo. Achei oportuno abordar este assunto nesta exposição que celebra a obra deste nosso grande escritor. Temos que admitir, e assumir, que a literatura e a alma de Lobato continuam ressentindo de um corpo, ou de vários corpos, em outras palavras, de imagens ilustradas por artistas verdadeiros.

Quindim, Rabicó e Dr. Caramujo.  

Gostaria de aproveitar este momento, em que estamos apresentando os desenhos preparatórios para a criação dos bonecos do rinoceronte Quindim, do porquinho Rabicó e do Dr, Caramujo, para mencionar uma questão conceitual muito importante ocorrida com a novela, em seu período inicial.

Em 1976, quando eu ainda estava esboçando o estilo da abertura, os figurinos e os bonecos, a Tv-Globo me enviou para Los Angeles, para  trabalhar na Croft Corporation. Esta fábrica produzia e criava os bonecos do Muppet Show e da Disneylândia também. Foi um grande aprendizado que tive. Uma experiência riquíssima entender e representar o personagem em três dimensões, e até mesmo a própria essência do espetáculo televiso para crianças. Vale lembrar que naquele momento, a TV-Globo pensava no Sítio basicamente em gravações internas, em estúdio, tal como haviam feito, com muito sucesso, o Vila Sésamo. Era, portanto, esta a direção em que eu trabalhava os meus projetos.

Pouco tempo depois, quando os bonecos já estavam prontos, a emissora foi gradualmente transferindo as gravações para o exterior — na verdade uma grande solução. O cenário do Sítio construído em Pedra de Guaratiba pelo grande cenógrafo Arlindo Rodrigues se transformou no Éden perdido. Era a natureza que as crianças urbanas desconheciam, além de um profundo apelo ao seu imaginário e uma saudade de algo que elas não viveram. A luz do sol mudava toda a concepção de figurinos, e bonecos,  no que se refere às questões da forma, cor, materiais, mobilidade e estrutura. Em síntese, todo o chamado “ethos” do personagem, que é a sua maneira de ser.

Os figurinos tinham que ser bem arejados, leves, resistentes à passagem por galhos e plantas Lembro que – quando desenhei o boneco do personagem  “Major agarra e não larga mais”, que era um sapo — utilizei pequenos e silenciosos ventiladores dentro do boneco para refrigerar o ator devido ao intenso calor de Guaratiba.

Sinceramente, não lamentei ter que começar tudo de novo. O que   aprendi na Kroft pude adaptar às circunstâncias da gravação, ao ar livre. Foi possível, com esta experiência, criar outros bonecos para a novela, em especial aquele que considero o melhor e o mais simbólico deles: a Cuca.  Que até os nossos dias permanece sendo usada de diversas maneiras, algumas absurdas e prosaicas.  A criação deste emblemático personagem é o  tema do nosso próximo painel. 

A Cuca e seu processo de criação.

Acredito que todos os figurinos que desenhei num primeiro momento — os da Emília, Visconde de Sabugosa, Príncipe Escamado — afora os outros bonecos que criei para a novela, o que teve maior impacto, a maior empatia junto às crianças, sem dúvida foi a Cuca. Reproduzo alguns estudos que fiz à época para criação deste carismático personagem, e que, até hoje, permanece revivido de todas as maneiras, por vezes até com soutien! — algo que jamais eu desenharia. A Cuca seria uma personagem para uma aventura apenas, mas, pelo seu grande sucesso, permaneceu e foi desenvolvida em outras aventuras. Em Lobato, ela aparece somente no livro O Saci.

Gostaria, pela primeira vez, de relatar ao grande público, passados tantos anos, alguns conceitos que me orientaram em sua criação. Todo personagem, todo figurino tem que possuir, conforme já disse antes, um ethos, em outras palavras, uma personalidade. Uma origem histórica, social, cultural e até mesmo mitológica. O ator é, e será sempre, o sujeito, mas o figurino não é apenas um simples objeto.  A primeira compreensão do interior de um personagem é por meio de seu aspecto plástico — a construção de seus significados vai ocorrendo ao longo do texto que, de certa forma, é uma extensão de seu figurino. E como fazer um figurino de sucesso?  Não existem regras. Existem caminhos, não atalhos. A palavra mágica, caso ela exista, são o trabalho na prancheta e a pesquisa.

O aspecto cromático da Cuca é um contraponto de cores quentes e frias, além do vermelho e sua complementar verde,  como é caso da região peitoral do personagem. Acredito, sinceramente, que um dos motivos da grande atração do personagem no vídeo foi o uso do vermelho como cor regente, e de sua complementar o verde. Cores altamente simbólicas. O vermelho do sangue humano e o verde da seiva das plantas. O encontro destas duas cores foi muito utilizado pelos pintores italianos, antes do pré-Renascimento. Eles sabiam muito bem usar o dualismo simbólico destas duas cores fundamentais. Temos sempre que ter consciência de que não trabalhamos unicamente com os aspectos físicos das cores, mas com os seus simbolismos, seus contrastes, seu passado e cultura, sua relação com as outras cores e, principalmente, com a sua temperatura: cores quentes e cores frias, por exemplo — existe uma metafísica das cores. A história da pintura está repleta de grandes exemplos disso.

O figurino da Cuca já foi projetado para o ar livre, considerando a sua relação com o ambiente natural e com os cenários construídos. Era preciso criar espaço no boneco para a plena desenvoltura e comodidade do ator. O ator é o fundamento. Nenhum personagem, nenhum boneco sobrevive, por melhor que ele tenha sido desenhado e construído, sem a presença e o talento do ator. Certamente este foi um dos componentes do sucesso da Cuca. A atriz, Dorinha Duval, era extraordinária na sua maneira de agir e falar. Junto com o figurino, ela criava uma simbiose, um “physique du rôle” perfeito. O figurino não é uma obra acabada em si mesma — ele está a serviço do ator; jamais o contrário. O figurino narra a história em silêncio. Resumindo: a alma de um figurino será sempre o ator.

Gostaria de citar o nome do, infelizmente já falecido, Eloy Machado. Ele foi o costureiro que construiu a Cuca. Estive em sua casa várias vezes acompanhando a montagem do boneco todo feito em espuma, feltro e fibra de vidro. O cabelo era de rabo de cavalo legítimo. Ele construiu outros personagens que desenhei. Não havia dificuldade técnica na minha criação para a qual ele não encontrasse uma solução.

Ainda como estudante em Budapeste, vi num livro escrito por Alexander Puskin e ilustrado por Ivan Bilibin, grande mestre russo da ilustração, uma representação da bruxa Baba Yaga. Fiquei bastante impressionado com a concepção do ilustrador, principalmente com os cabelos esvoaçantes da bruxa. Todos nós conhecemos a força e o simbolismo dos cabelos.  A criança convive bem, diferente do adulto, com o universo visual do horror e do bizarro. Outro aspecto importante na concepção visual da Cuca, e talvez isto também explique o seu fascínio com as crianças, se deve ao fato de o jacaré lembrar muito um animal pré-histórico. No caso, um dos mais  temíveis: o Tiranossauro. Eu não poderia perder este detalhe de ligação com o imaginário infantil. Os esboços que fiz à época, e que aqui estão expostos, demonstram bem esta origem pré- histórica da personagem.  

O Príncipe Escamado

Para desenhar o Príncipe Escamado, quis fazer algo próximo de um herói de quadrinhos. Lembrei de personagens de minha infância: o filme O Monstro da Lagoa Negra, Príncipe Submarino e tantos outros. Você não representa a aparência, mas sim a essência dos personagens. O figurino é um personagem que fala sem ter voz. O Príncipe Escamado era algo que vinha do Reino das Águas Claras, portanto, um príncipe com escamas e barbatanas.  A sua cor regente seria o verde-amarelo até o verde azul, o turquesa. Muitos contos de fadas representam príncipes e princesas  que habitam no mar, e por algum motivo eles vêm até a terra. Todo este imaginário visual eu não poderia deixar de pesquisar e desenhar. 

O Casamento de Narizinho com o Príncipe Escamado, o clássico Noivo Animal em Monteiro Lobato.   

Até onde pude saber, penso que seja esta uma das primeiras representações em nossa literatura para crianças, escrita por um brasileiro, que nos apresenta de forma tão maravilhosa um dos momentos mais emblemáticos e misteriosos dos contos de fadas: o noivo animal. Como histórias clássicas e exemplares, neste segmento, portanto referentes aos chamados ritos da iniciação e do autoconhecimento, nós  temos o A Bela e a Fera, O Rei Sapo e muitos outros. Realizei esta ilustração para a mostra As Visões da Emília. O olhar de 7 ilustradores brasileiros – Centro Cultural Banco do Brasil – Foyer – 1996. Fui o organizador e o curador daquela exposição. Sobre o tema tão importante dos símbolos na ilustração de livros para crianças e jovens — e que esta ilustração do casamento de Narizinho com o Príncipe Escamado é um belo exemplo — eu gostaria de fazer algumas reflexões finais sobre o símbolo e a arte de ilustrar.

Eu diria incialmente que ilustrar é supor. Ver também é uma suposição. Um ato essencialmente pessoal, uma intransferível vivência. Em qualquer que seja a imagem, o que vemos realmente são os nossos desejos. Os nossos símbolos pessoais.  Algo muito além, e bem diferente do devaneio original do artista que realizou a ilustração. Vemos o nosso anseio. A forma por nós desejada, a imagem que se origina em nossas internas volições. O que construímos diante dos olhos é a nossa expectativa. Ver é tirar o disfarce desta ansiedade.

Portanto, a ilustração jamais será a visão unilateral de um artista ou de um texto. Em termos simbólicos, ela é uma Hidra com infinitas cabeças de serpentes, e destas, sem parar, outras nascem sucessivamente. Isto significa que, quanto mais plural em suas singularidades, quanto mais indagativa for a ilustração, mais ela desperta narrativas ao olhar do pequeno e grande leitor. Certamente, a bela ilustração é aquela que revela e estimula as palavras, e as imagens interiores e anteriores de quem as vê. 

Como se configura simbolicamente a imagem que vemos? Podemos dizer que ela é uma esfinge. Um ser geralmente híbrido que devora todos aqueles que não elucidam seus segredos.  E como poderíamos situar a ilustração neste caso? Ela é, da mesma forma, uma esfinge a partir de um texto. Onde só nós possuímos a chave para o desnudamento de seu mistério. Mesmo não sendo a ilustração a imagem similar e espelhar do texto, apesar disso, podemos nos referenciar  à Alice, ou seja,  não vemos a imagem por meio do espelho, e sim, através do espelho. Ver é imergir em nossos símbolos pessoais

Rui de Oliveira – Biografia

Nasci no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. Estudei Pintura no Museu de Arte Moderna, Artes Gráficas na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e, durante seis anos, Ilustração e design  na atual Moholy-Nagy University of Art and Design, em Budapeste. Estudei também Cinema de Animação no estúdio húngaro Pannónia Film.

Doutorei-me em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo. Fui diretor de arte da tv Globo e da tv Educativa, atual tv Brasil. Entre as principais aberturas e vinhetas, destacaria as que desenhei para a primeira versão da novela Sítio do Picapau Amarelo e a reformulação do videografismo da TVE.

Já ilustrei 142  livros ( Setembro de 2019). Trabalhei para as principais editoras de literatura infantojuvenil brasileiras. Realizei seis desenhos animados e recebi alguns prêmios como animador e ilustrador. Entre eles, quatro prêmios Jabuti de Ilustração. Fui indicado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ –  ao Prêmio Hans Christian Andersen – IBBY –  na Categoria Ilustração, em 2006 e 2008. Em 2006, recebi da Academia Brasileira de Letras com o livro Cartas Lunares, publicado em 2015 pela Cia das Letrinhas, o prêmio de melhor texto para livros infantis.   Sou professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lecionei durante trinta anos no curso de Comunicação Visual e Design da Escola de Belas Artes. Mais detalhes sobre o meu trabalho, vocês podem ver acessando o site: www.ruideoliveira.com.br e o blog:
http://ruideoliveira.blogspot.com. – Perfil no Facebook.